Carmelita e a árvore
Carmelita sempre foi meio esguia. Às vezes tinha vergonha das mãos ossudas e as escondia na blusa, discretamente. Moça, devia ter uns 20 anos. Poucas palavras, gestos tímidos. Cresceu acostumando-se com a mãe doente, sempre. O pai era um bêbado da pior espécie, canalha. Não gostava de banho, achava coisa de marica. Trabalhava numa oficina e tinha o macacão como eterna morada. Apesar das circunstâncias, Carmelita não sofria agressões físicas. A mãe não tinha forças, o pai nem a via. Como um vira-lata, ignorado, era Carmelita nos cantos da casa. Mal falava. Sabia que não havia ouvidos para as suas palavras. Nem tentava agradar. Sabia que irritaria se o fizesse. Apenas sobrevivia. Acordava, abria as janelas do casebre. Recolhia a urina da mãe, cada vez mais gorda, cada vez mais imóvel. Limpava o vômito do pai que muitas vezes dormia acompanhado por outras mulheres, ali mesmo, na sala. Vermes. Fazia a comida e se retirava à sombra da mangueira. Lá sim, conversava.
Tinha a árvore como uma mistura de madrinha com irmã, algo ssim. Todos os dias, Carmelita sentava-se, beijava a sua árvore e buscava saber como havia passado a noite. Algumas vezes era vista pelo pai que fazia questão de lhe ofender soltando o grito: "Magrela pé de pau, busca o que fazer. Não tive filho para vadiagem." E sempre Carmelita avermelhava sua franzina face. Sentia vergonha, principalmente pela presença de sua amiga. Tinha medo que ela a deixasse, a achasse inútil ou mesmo fraca diante dos berros do pai. Mas bastava Carmelita encostar a cabeça na mangueira para saber que nunca iria acontecer. E como se a árvore sentisse precisar afirmar isso, derramou uma cheirosa manga no seu colo.
Carmelita foi crescendo. Sofria muito em casa, mas quando chegava na varanda, sorria junto com a árvore. Passaram-se os anos até que faceleu sua mãe. Não sentiu de fato saudade. Mas sentiu-se sozinha. Porém, experimentava um certo silêncio que antes as reclamações da jovem gorda esvaia. Sentiu mais terror do seu pai. E inventou a mágica que o fez desaparecer, ao menos dentro dos seus dias. Mesmo que o visse, que o ouvisse. Fez-se muda e surda. O pai, como sempre deu de ombros. Na verdade, o pai sequer percebeu diferença nenhuma. E continuou o mesmo pai. Agredia-lhe. Chamava-a de porca e saía pensando na cerveja que esquentava. Ela silenciava e seguia para a leve companhia de sua árvore. Relaxava, algumas vezes até dormia. Sentia-se segura em sua sombra. E agradecia sempre aos céus por tê-la por perto.
Certo dia, sentiu-se mal. Era madrugada e um impulso a fez correr para a árvore. Havia uma equipe com equipamentos em volta dela. Temeu estar certo seu pensamento. Correu. Buscou saber o que estava acontecendo. Responderam-lhe: "Nada demais, minha querida. Volte para seu sono. Vamos apenas derrubar a mangueira. Aqui será construído um bar". "Nããããããoooo". E subiu rapidamente nos galhos impedindo a ação. A equipe de trabalhadores ficou atônita. Começou amanhecer. Carmelita não desceu nem quando um deles subiu para retirá-la. Com mais horas chegou o engenheiro, o dono da construção, seu pai e suas amantes, a vizinhança, a televisão, o prefeito, os bombeiros, enfim. Nada adiantou. Carmelita parecia ter ganhado galhos, ter criado raíz também. Parecia confabular com a centenária árvore. Estava certa de que ou faziam o bar sem a árvore e arrancavam dali a vida das duas, ou adaptavam a idéia e mantinham a árvore em seu lugar.
A manifestação ganhou proporções impressionantes. Grupos ambientais vieram juntar forças em prol de Carmelita e sua árvore. Crianças gritavam: "Carmelita, Carmelita, Carmelita". E de cima Carmelita ria, abraçava-se com a sua companheira e esperava a decisão. Havia um aparato e toda a confusão estava sendo transmitida ao vivo. O dono do bar começou a gostar da promoção. Pensou ser um bom negócio todos aqueles olhos diante do seu futuro bar. E imaginou não ser ruim manter a árvore no projeto. Conversou com o engenheiro e definiu: "A árvore fica e Carmelita pode descer". Uma ensudercedora salva de palmas perdurou por dez minutos. Carmelita agradeceu a todos distribuíndo sorrisos. Seu pai espalhava: "É minha filha, Carmelita é minha filha... filha... dá chauzinho pro seu pai, querida". O dono do bar dava entrevistas. As crianças, num ato de amizade, abraçavam a árvore salva. E em menos de três meses o bar funcionava tendo como sua principal atração "Carmelita e a árvore", onde dezenas de crianças adoravam ouvir histórias sobre a natureza enquanto as refeições não eram servidas.
Publicado originalmente em janeiro de 2005
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