Saturday, January 19, 2008

Sem título

Saí andando, descendo a ladeira. Estava sem orientação, cansada e decidida. Tinha que chegar a tempo. Não vi as horas. Não gosto de relógios. Avistei a esquina da minha infância e adentrei. Meu choro invadiu meus ouvidos. Que droga! Quantas pessoas acabamos sendo na velhice? Quantos personagens? Corri para chegar à casa amarela. Vi os cachorros do Escuro.

Escuro estava sempre na sua barraquinha de vender vaidades e fofocas. Passei por eles sem olhá-los. Não queria que me reconhecessem. Odeio cumprimentos alegóricos, entorpecidos de nadas. Não me viram e eu virei em direção ao campo. Não era mais um campo. Não importava. Nada daquilo era mais meu, apenas do passado. Dei de ombros quando avistei a lombada da média idade. Não vi o táxi. Apenas escutei o taxista:

— É aqui senhorita. O devaneio me orientou para deixá-la em cima deste galho. Bom dia!

Não entendi nada. Que merda!

Sempre carreguei a frustração de não ter sido levada nos meus 11 anos. Agora como descer desta bendita árvore? Esqueci. Fiquei por ali, abri um livro e encomendei uma cerveja. Cochilei e só consegui abrir os olhos quando a encarregada gritou:

— A próxima!Levei minha ficha e não consegui mais que entreabrir a boca enfeitando um sorriso:

— Sim sou eu... Sim... Sim... Não, não falo inglês. Não... Não... Não, minha senhora, não falo, não escrevo e nem escuto... Sim, já tenho noções básicas de informática... Tudo bem!

Deixei aquela imbelicidade sozinha torneando a escrava matemática da sobrevivência e menti:

— Amanhã, sem falta.

No estacionamento, coloquei minhas asas e saí. Não queria pegar o engarrafamento. A brisa estava eufórica e parei para limpar os óculos. Merda! Que deficiência não ver o contorno sem este aparelho caquético. Caí na sala de estar de um casal histérico. Fiquei por ali e providenciei que ninguém me visse. Discutiam sobre contas, filhos e regalias sociais. Deslizei pela cozinha quando meu coração foi tomado pela saudade. Uma ridícula saudade, é fato. Mas uma saudade de todo modo e meus olhos insinuaram lágrimas. Na minha frente estavam lírios, muitos. Lírios e margaridas. Fui convidada por eles a uma sombra e aceitei. Não falamos nada, não seria necessário um só fonema naquele momento. Estávamos nos sentindo quando a buzina absurda da velha locomotiva ensurdeceu aquela hora.

Fechei os olhos e ceguei meus ouvidos com as mãos. Levantei lentamente. Ainda de olhos fechados e mãos nas orelhas. Fui levantando e sentindo um descompasso exagerado em minhas artérias. Quis dar um passo quando fui impedida pelos gritos enlouquecidos de uma população inteira. A um passo dos meus sapatos, trinta metros de altura. Equipes lá embaixo me liam. Jornalistas, bombeiros, policiais, padeiros, cães, carros, a aurora, enfim, ninguém queria perder o desfecho daquela sórdida situação. Atrás de mim, uma senhora muito lúcida esticou os braços e me acolheu:

— Minha filha, olhe por onde anda. Um passo em falso, a vida pula, o corpo vira inutilidade e jamais ninguém saberá o que você vai fazer depois do almoço.

Corri dali.

Com as pernas trêmulas da longa viagem, precisei de água. Havia uma pequena casa do outro lado da pista. Estava seco. Parecia sertão. Bati palma.

— Oh de casa!

Uma voz azeda e mal cheirosa veio de longe:

— Oh de fora!

— Água, por favor. Sinto muita sede e tenho pressa.

Espremi os olhos para entender a imagem. Vinha sendo arrastado por incrédulos chinelos um senhor de muita idade. Como numa retrospectiva, vinha lento, do fim para o começo. Negro, cabelos brancos, sorriso alargado. Trazia uma caneca.

— Aproveita, menina, a água é parca por estas bandas. O mar já chupou os rios e semana que vem ele estará de partida. É melhor não se atrasar.

Achei inteligente aquilo. Tirei meu caderno das idéias e anotei.

Fiquei vazia depois daquela água. Continuei andando pelo nada que tinha. Olhei para trás e meia dúzia de vira-latas me seguia. Fingi que não era comigo. Um deles, parecia o líder, alinhou-se a mim.

— Seu relógio.

— Não tenho relógio, odeio as horas.

— Não interessa boneca, queremos o seu relógio ou teremos que invadir suas roupas.

Ouvi rosnar os demais da gangue. Percebi que estava cercada por bandidos. Não tinha ninguém por perto. Babavam de prazer e tinham o ódio como alucinógeno.

— Dou meu nome, é tudo que tenho.

Entreolharam-se. Pareciam interessados. Um deles, talvez o encarregado pelos serviços ágeis, me derrubou com um pulo e me levou o orgulho. Seguiram rindo e estraçalhando o meu bendito orgulho.

Abri a primeira porta que encontrei. Precisava encomendar vaidade. Era uma loja de antiguidades. Passeei pelos anos ali. Desliguei o meu chão, minhas dívidas e cruzei os braços.

— Posso ajudar? - Uma voz muito rouca e irritante me atrapalhou.

— Claro! - respondi cínica — Deixe-me e jamais me faça qualquer outra pergunta.

Era uma escultura que me alimentava. Parecia um bicho, um javali, talvez. Mas tinha olhar de gente. De gente que me conhecia. Queria me dizer alguma coisa. Pedi uma cadeira. Nada mais me interessou. Deixei o instante seguinte para depois. Fitei aqueles olhos até descobrir. Desprendi minha alma por algum tempo, não lembro quanto. Um prazer inexplicável naquela relação me fez gritar de pavor. Quebrei cinco ossos da mão defendendo-me da resposta. Eram lembranças do meu matrimônio. Depois gargalhei até ser expulsa. Gargalhei de raiva, de medo, de deboche.

Perambulei. Não sabia mais onde estava. Resolvi perguntar a um velho de unhas negras que acendia um cachimbo bem no meio da chuva:

— Senhor? Por favor! Em que século estamos?

O velho me olhou, deu passos a minha volta, levantou meus braços e olhou bem fundo nos meus olhos. Passaram-se incontáveis minutos, ele me olhando e eu esperando saber onde fui parar. O velho se aproximou o máximo do meu nariz e começou a rir. Começou com um riso calmo e pausado. Depois foi aumentando tanto de volume quanto de freqüência. O velho começou a me apontar e a girar. Girando e mijando de tanto rir. Velho imundo! Parti para cima dele. Quis esmurrar o traste. Quis ferir sua face vil. Parti e bati com a cabeça num espelho. Que merda é essa agora?! Passei a mão na minha testa e senti o corte. Ardia, mas não sangrava. Levantei meu rosto e vi minha imagem: olhos fundos, cabelos desalinhados, brancos. Meus dentes acabavam de cair no ralo da pia. Minhas unhas se desprendiam dos dedos e minha coluna curvou-se. Fiquei com medo de andar. Dei um passo e caí no gramado com flores. Uma voz fragmentada e débil avisou de longe:

— Deite, querida. Não se preocupe. Jogue seus óculos fora. Não será mais preciso acordar.

Publicado originalmente em agosto de 2004

Hoje sim, senti uma vontade louca de escrever

Hoje sim, senti uma vontade louca de escrever. Não tenho, no entanto, nenhum tema em mente. Divorciei-me deles. Muitas vezes fiquei esperando que um tema viesse, batesse em minha cabeça: Toc, toc, toc. Posso entrar, dona Carla. Sou alegre, poético. Ou então: Sou Cult. Já venho esmiuçado. Precisa ver minhas vertentes. Ou mesmo uma música que entrasse pelos meus ouvidos, dançasse lá dentro, saísse pelos meus dedos e mais tarde pudesse ler. Pudesse apagar. Mas não! Nada. E sofri com isso. Acho que todos que necessitam escrever sofrem com a estiagem de palavras. Mais que a estiagem, sofrem com a tal relação com o tema, com o assunto, com os por quês, com o começo, e sobretudo, com o fim.

Levantei meio lerda esta manhã. Cedo. Caminhei para a minha xícara. Senti arrepios na cabeça. Nada demais. Sempre sinto arrepios no couro cabeludo. Até gosto. Uma espécie de cafuné independente. Mas o daquela manhã me afigurou demasiado esquisito. Geralmente a cosquinha fica num lugar só por vez. Aparece. Demora um pouquinho, desaparece. Depois de um tempo, pode ou não voltar. Ninguém é agraciado com meia dúzias de cafunés num mesmo café da manhã. Admito, comecei a temer. Pensei em espíritos. O que diacho querem de mim? Maquiei-me calma. Indiferente. Tentei: Bom dia, querido invisível. Muito gentil de sua parte a iniciativa de relaxar meu crânio, justo numa manhã assim, né, quente? Agradeço e digo-lhe que já me sinto satisfeita. Mais relaxada, impossível. Gostaria que parasse. Por favor, não me leve a mal. Pelo contrário, o arrepio ganhou velocidade. Sentia duas mãos mexendo minha cabeça. Paralisei. Acho sempre que ficar imóvel ajuda em alguma coisa. Claro que não. A coisa agora me despenteava, puxava meus cabelos, me empurrava. Quis gritar, mas graças à Deus, desisti. Os vizinhos já me acham maluca, doidona. Teriam agora provas. Ainda mais contando com a digitalização exarcebada... tudo agora é foto. Todos iriam adorar ter uma. Até eu. Queria ver de outro ângulo aquele absurdo. Melhor não. Claro, melhor não!

Nessas alturas eu estava completamente zonza, refém. Meus cabelos mais pareciam uma alça para alguma força, para alguma mão, algum gancho. Cheguei a elevar-me. Estava puta com quem ou com o que bexiga fosse aquilo. Permitiria-me a uma baixaria com a raiva que estava. O medo já era. Quem diabos tem a ousadia de invadir meu café e sair me rodando pelos cabelos? Era só isso que me interessava saber. Já não existia mais um talher em cima da mesa. Um tufão. Cheguei a pensar que virei um tufão. Que já não era mais gente, era vento. Vento desvairado. Vento desencontrado. Vento que tromba em si mesmo. Hematomas me estampavam. Passava a mão por cima da minha cabeça e era inútil, não tinha nada. Meus cabelos minguaram. Meus pés batiam na geladeira, no fogão, nos bancos. Durou meia hora a insanidade. Depois fui lançada em cima da pia. Pronto. Tudo voltou ao mais absoluto silêncio. Eu sangrava. Puta merda! Que porra foi isso?! Não tinha ninguém para me explicar. Eu entre cacos. Nada mais. Restabeleço-me. Busco minhas sandálias (uma em cima do armário, a outra na pãozeira). Alcanço um analgésico. Alongo meus ombros. Saio. Vou para a sala.

De longe avistei uma cabeça ruiva, de costas, relaxada na minha poltrona. Antes que me visse reclamou:
- A questão é a seguinte: que cabeça dura a sua!
Eu, com uma cautela que jamais tivera, quis saber:
- Quem é você? O que faz aqui? - Com voz mansa, mansinha, evitando o máximo mais aborrecimentos.

Levantou-se. Uma sincronia admirável. Pausada, equilibrada. Virou-se. A mulher era impecável. Usava uma blusa de linho, com corte fino, caprichado. Uma maquiagem metricamente conveniente. Nos pés, sapatos brilhosos, bico fino, salto mediano. Uma pantalona muito elegante. Bijuteria satisfatória. Um pequeno sorriso:
- Não vim gerar conflitos, pelo contrário. Vim libertar-me de você.
- De mim? Mas quem diacho você é? De onde peste eu lhe conheço?
- Acalme-se. Você sempre foi assim, afobada. Não sabe como isso me irrita, me bloqueia, me limita.
- Olhe aqui, minha senhora. Não estou num bom dia... não mesmo - e antes que eu estreasse na baixaria, interrompeu-me, leve, entre um gole de chá que eu não faço idéia de onde ela foi buscar:
- Hoje, na cozinha, começamos a nos afastar.
- Você viu?
- Como você é ingênua, filha.
- Odeio que me chamem de filha, principalmente desconhecidos.
- Quem te fez rodar fui eu.
- AAAAh, sua desgraçada! - e corri para pendurar-me em seu cabelo esteticamente primoroso, moldado, rídiculo para ser mais precisa e franca.
- Opa, opa, opa. - Ai como odeio efusões de bom senso - não adianta me atacar. Batendo em mim, é você quem vai sentir.
Acho que tirei a gargalhada do inferno de tão debochada, sarcástica que soou. Até fiquei espantada, mas não deixei ela reparar:
- arrrr rá rá rá rá... arrrr rá rá rá rá, não me faça mijar na sua frente. Você é uma louca. Você é uma desajustada, uma manifestação da besta fera. De qual manicômio você saiu?
- Saí de você.

Ainda ria, mas minhas bochechas cessaram a graça. A afirmação pronunciada entrou em mim como toneladas de realidade. Tremi. O que era, afinal, aquela mulher? Como ela veio parar na minha sala, no meu tapete, diante de mim?

Com esforço consegui:
- Com - como?
- Oh, minha filha, sem churumelas. Sempre assim, você, hein? Que dificuldade em conceber o momento, as coisas que se apresentam aos seus olhos. Santa incompetência! Por que tudo tem que ter um infantil "com - como?". Desculpe os termos, mas até eu às vezes preciso: puta que pariu, porra de "com - como?", minha filha. Tomar no... - E como se estivesse recebido um recado do auto-controle, continuou - Sou a guardiã das suas idéias. Sua memória lúdica. Quer dizer, era. Vim demitir-me. Eu era uma parte da sua consciência. Vivia na fronteira com o seu abstrato. Jamais estarei de volta. Por questões éticas, vim comunicar-lhe.
- E qual a falta que vou sentir? Você está aí, eu aqui. Estou pensando agora... tendo idéias, inclusive!
- Mas elas não vão perdurar nada, nada. Todo escritor tem uma semelhante a mim. O que vêem, o que sentem e que pode virar palavras é organizado por alguém. Senão, perde-se tudo. Você, meu bem, é uma improdutiva. Pensa, pensa, pensa. Só vive de idéias. E eu lá, arquivando seus devaneios. Ainda mais você vive de cabeça quente. Trabalhava no maior abafado que se possa imaginar. Pra quê? Pra você escrever bulhufas. Tô fora. Dane-se você, dane-se suas idéias, dane-se seu crânio, dane-se seu futuro, dane-se dobrado seus leitores. Completos imbecis.

Fiquei atônita. Tudo o que aquela desgraçada falava, imediantamente, virava razão em mim. Muito estranho. Suava. Não conseguia formular sequer mais uma pergunta.

- Dane-se, dane-se, dane-se - Pegou a bolsa e saiu batendo a porta.Puta merda. Que manhã foi essa? Será que essa maluca saiu da minha cabeça mesmo? Parecia tão certa, tão liberta. E agora? Será que, mais do que nunca, estarei aprisionada às minhas idéias inconclusas?

Na casa um vento forte entrou. Parecia querer varrer o resto de anormalidade. Sentei meio tonta, fora da real. Uns cinco minutos devem ter passado. Corri para a máquina. Resolvi não pensar muito. Vai que tudo se esvai? Senti as palavras me chamando. Aquela mulher deveria ser uma espécie de burocracia. Agora me parece aflorar o verbo. Derramar as idéias sem preocupações com normas, com ordem, ou mesmo com lógica. Pulsá-las no papel. Assisti-las ainda frágeis. Ainda crianças. Libertá-las. Fazê-las desenho. Escrever, nada mais que escrever.

Publicado originalmente em dezembro de 2004

Causo do sertão, enquanto o circo não vem!

Desejo incurável! Quando o ponteiro se aproxima das dez, nada me faz tirar da cabeça a bendita espingarda. Um dia eu acabo com isso. Já quis esquecer, mas o ódio parece que só aumenta. As tocaias, desvairadas loucas da madrugada, me deram adeus, desgraçadas. Um dia eu também as pego. Me abandonaram numa noite sem lua. Fiquei lá só... Melhor. Por isso tratei de arranjar um cão, chamei o Guido. Não fazia nada mesmo! O que tem me acompanhar? Nada mais cruel que um homem entregue ao frio sem nem um ouvido, nem uma orelhinha para levantar enquanto a gente derrama as palavras, evita o entupimento das idéias. Como vai fazer? Explodir de tanto nada que se diga? Guido me ajuda muito. É! Eu nunca o vi latir... correr então?! Transfigura ser um pobre coitado, diacho. Às vezes o vejo sem força sequer para levantar. Quando se coça, desequilibra, tomba. Mas não é possível que ele não tenha alma. Tudo que tem alma tem a honra guardada. E tem outra. Só vou necessitar de Guido quando eu estiver muito mal, muito mal mesmo. Homem são, cabra macho, homem de verdade mesmo, não se confia em animal. Só em Deus e na espingarda. Nem em mais nada. Guido é só para compor uma companhia. Infeliz um homem de seus quarenta anos desacompanhado pelas estradas.

Hoje vou mais cedo. Já enchi a moringa, dei capim a Apólinário. Apolinário é outro, diacho! Oh cavalo lerdo! É moco ele! Mas não tô reclamando não. Que bexiga é um homem com um cão do lado, desmontado do cavalo, sem cela, sem laço?! Só pode ser um pérrapado, um traste, pior que um maluco fedorento e sem direção, tostando no sol e lambendo a poeira, enquanto ri se babando... só pode. Apolinário pelo menos me dá uma pose, relincha quando a gente se aproxima da feira. Sim, porque pra quê peste eu vou querer um cavalo que não relincha? A garganta dele é meio fraca. Dente só tem uns quatro, mas tá bom. Hôme. Pior é Jerônimo que a mulher foi embora e deixou o pobre sem gado. Levou Caipira, o jegue dele. Agora aó vive assim, com copo de cachaça na mão e sem saber nem mais 0 que jura por aí. Perdeu a honra num jogo de baralho. Ainda levou uma surra de tabica.

Agora eu não. Um dia Barra Mansa vai conhecer o verdadeiro Jão. Um dia minha espingarda vai mirar bem no meio das perna dela e tebeife! Me livro desta infeliz lembrança. Enterro com ela. E vou me embora procurar a sorte de novo. Minha honra foi roubada naquele dia e naquele dia eu jurei ir atrás dela. Dizem que mora num circo. Oh destino desgramado... foi simbora com um palhaço, a infeliz da Jurema. Deve ter virado a macaca do espetáculo. Tomara. Logo ela que não admitia banana. Bem feito, acho é pouco. Febitife.

Tá bom de conversa. Homem valente não tem de ficar de trelelê com ninguém não. Avalie com andante desconhecido como você. Agora deu a boba mesmo. É tô infezado, que é que tem? Tô aqui desde as dez e nem um sinal daqueles mambembes. É bom que a raiva só crecer. No dia em que aquele carro descatembado cruzar o meu caminho, ai, ai. Sai de perto que minha espingarda, até que fim, vai se manifestar. Eu disse a ela, eu bem que disse a ela... Jureeeeema, não invente de fazer que nem Doda. Doda chifrô Tião e Tião, bestalha, se matou. Se você fizer que nem Doda, mato você, nêga. Mato você e enterro com a minha cuspida. Oxe, eu dizia era todo dia e ela: Oh, Jão. Diga uma coisa dessa não. Pra quê vou trair você, hôme. Pra quê, Jão?! Aí vinha toda quenga cum cara de moleca pra cima de mim. Aí eu, que nem um abestalhado, deixava a raiva ir embora e me deitava mais ela. Oh desgramada.

ATÉ QUE VEIO O DIA!!!
23 DE JUNHO, O DIA QUE O CIRCO CHEGOU EM BARRA MANSA

Jão se levantou. Guido, em carne viva - pegou um germe que lhe comia há três semanas, cochilava no terraço. Apolinário lá, amarrado. Resmungando, sentou-se na mesa, de costas para a porta, enquanto a chaleira fervia a água. Arrancou um taco de pão, reclamando da zuada que ouvia. Era o circo se aproximando. Quando a caravana estava a dez metros de distância, Jão deu um pulo. Parecia ter recebido o aviso. Correu. Atrás da porta de seu quarto, apanhou a espingarda. Correu para o terraço. Guido levantou, com muito custo, um pouco de sua cabeça, olhou para Jão e parecia pensar - já vem o doido. Só deu tempo de Jão ver a poeira baixar. A toda velocidade a caravana deixou Barra Mansa e Jão achando ter perdido uma promoção.- Mascates do inferno. Nunca passam por aqui. Pra quê diacho essa carreira. E eu doido pra negociar munição e ver se esta espingarda ainda funciona. Diacho!

E quando foi dez horas, lá foi o trio - Jão, Guido e Apolinário - esperar a tal da Jurema na direção oposta.

Publicado originalmente em maio de 2005

Afinal, pernas, pra quê lhes queria?!

Quis andar hoje. Sei lá, andar. Sem compromisso com as horas, com ninguém, nem comigo. Combinei com minhas pernas: pernas, levem-me. As pernas obedeceram e foram. No primeiro quilômetro as vigiei. Vai que elas resolvem entrar pelo cano?! Mas a partir do segundo, relaxei. E relaxei de verdade. A Esquerda é sempre a engraçadinha da turma. Vendo-me relaxada, de olhos fechados, arriscou: Passa a bola! É cada uma! Resolvi não passar a bola coisa nenhuma. Chutei. A eficiência fortificada da Direita acertou uma vidraça. Ambas me arrancaram dali. Batiam no meu bumbum de tanta pressa. E eu: Pernas! Pra quê lhes quero! Parem agora mesmo. Pararam. Hoje sou de vocês, mas exijo relaxar. Quero caminhar, ir, apenas ir para qualquer lugar. Em trinta anos, este é o dia que a pressa não me visitará. Agora vão.

Direita e Esquerda foram. Calmamente me levaram pela cidade. Tinham a visão melhor que a minha. No centro, se divertiram esquivando do povaréu. Livraram meu quadril de, pelo menos, três quinas. Fizeram-me saltar de graça. Reclamei quando, em plena Praça dos Martírios, ousaram emplacar pulos coreografados de Dançando na Chuva. Vieram as topadas e percebi que era a hora de parar. Já passavam das seis. Estávamos longe. Assumi minhas pernas. Sentei olhando para a lagoa. Direita e Esquerda dormiam agora. Débeis. Descalcei os pés. Enfiei-os na água. Na beirinha da ponte, deitei. Os pés na água. Uma calmaria! Sentada encontrei o que buscava o dia inteiro bantendo pernas. Fechei os olhos.

AAAAAAAAAAAAAAAAA! Gritei de dor. Havia dormido. Deitada. Na ponte. Havíamos dormido, Meu Deus! Eu, meus pés, minhas pernas. Uma fração de segundos e o acontecido. De ré, uma lancha desgovernada arrancou meus membros que adormecidos aguardavam meu chamado. Que em breve seriam calçados e, com preguiça, me levariam para casa. Agora, em seus lugares, água e sangue. Quase desmaiei. Resisti. Ainda pude ver Direita e Esquerda sendo levadas. Quis abraça-las, mas ainda não sabia andar com as mãos. Hoje, meu mundo virou de ponta cabeça. Mesmo! Literalmente. Troquei os sapatos por luvas de palmas emborrachadas e ganho a vida por aí... transformando a assustada piedade da frágil população numa inesgotável fonte de renda. Afinal, pernas, pra quê lhes queria?!!!

Publicado originalmente em outubro de 2004

Esmeralda, que tristeza tua risada!

Certo dia conheci Esmeralda. Tinha a cabeça chata e o cabelo ralo. Devia pesar uns 120 ou 130 quilos. Gostava de vestir bolas. Às vezes, monocromáticas, noutras, multicoloridas. Mas sempre bolas. Andava com dificuldades e pior ainda era levantar. Me oferecia sempre um braço para ficar em pé. O que mais me impressionava nela era o som de sua risada. Ela começava e eu doía de rir também. Por nada, muitas vezes. Mas havia um grave probleminha. Esmeralda, se ria demasiadamente, sofria. Precisava de ajuda para parar. E para parar, seu estômago precisava ser esmurrado. Quanto maior a força, maior a eficácia. Ela só me revelou isso há duas semanas, quando ri e chorei ao seu lado.

Estávamos no cinema. Uma comédia na tela. Geralmente minhas risadas não são estimuladas por filmes cômicos. São raros os que de mim desprendem risos. Gargalhadas só experimentei ao lado de Esmeralda mesmo, justo neste dia.

A cena era patética, mas de fato, engraçada. Duas crianças traquinavam na cozinha. Juntas tiveram a idéia de chupar o gelo (que eles chamavam de neve) acumulado no congelador. Fariam um rodízio. Enquanto o primeiro agachava e servia suas costas como salto, o segundo abocanhava a invenção. (Nisso, Esmeralda já começava. Ria em pedacinhos, baixinho. Depois, de acordo com a evolução da bobagem que via, alargava sua graça. Endireitava-se na cadeira para que o diafragma funcionasse melhor). Na primeira tentativa, a criança ficou com os lábios grudados na geladeira. A criança-escada, chorava de dores, depois ria, o outro grudado e Esmeralda estrondava de rir. Eu, por tabela, nunca tinha rido tanto. Ela olhando para o filme, lacrimejando de rir. Eu olhava para ela e me superava na gargalhada. Começamos a incomodar. Fui cessando, me preocupando. Esmeralda, não. Ela ria de olhos fechados, balançando a cabeça de um lado para o outro como se quisesse achar concentração para parar. Piorava.

Comecei a me preocupar de verdade. Esmeralda ria e parecia querer me dizer alguma coisa. Eu não entendia e ela achava mais graça.
- Mi bá, mi bá, mi bá... hahahahahahahaha
- O quê, Esmeralda? Está ficando louca? Pára! - Eu suava e tentava me esconder da platéia que a esta altura insinuava revolta.
- Mi bá, mi bá, mi bá - entre risos enlouquecidos, contorcionismo e caretas, Esmeralda repetia.
- Esmeralda, respira. Calma. Esmeralda, calma. Isso...
- Mi bááááá... hahahaha

Cacete! o que eu vou fazer? (pensava)

- Fala, Esmeralda... tenta, vai...
- Me bate... hahahahahaha... me bate, me bate... hahahahaha
- Bater? Tá doida? Por quê?!
- Me bate... hahahaha... me bate na barriga... hahahahaha... ajuda, quero pararhahahahaha...

Meu Deus! Sem muito pensar, ajoelhei-me na sua frente e soquei.
- Hahahahahaha - parecia não adiantar.
- mais forte, mais forte! Hahahaha...

Onde vim me meter?! Fechei os olhos, apertei os dedos das mãos e esmurrei Esmeralda. Juntei toda a minha força, concentração e a vontade que tinha de cessar aquele absurdo. Quando estava já conseguindo calar Esmeralda... Pow! Todas as luzes do cinema acenderam. Em seguinda uma ensurdecedora vaia!

Levantei lentamente. Nesta hora, Esmeralda calou-se, endireitou-se na cadeira e ninguém diria que ela havia tido um surto. Eu, atônita, descabelada, e ainda em gesto de soco, vi os policiais se aproximarem. Um deles, o mais assustador, levantou meu braço e perguntou a todos:

- Foi esta?!
- Foooooooooooooooooi! - respondeu a platéia agora feliz e estonteante com o espetáculo extra.
- Não! - tentei explicar.
- Não tente explicar - disse o policial rispidamente - Você foi pega em flagrante e tudo que disser poderá ser usado contra você!
Olhei para Esmeralda. Ela, nada. Apenas alisava a estúpida barriga. E eu:
- Esmeralda? Não vai dizer nada?!
- Vamos, já protagonizou demais por hoje, mocinha - finalizou o policial me levando pelo braço debaixo de uma chuva de aplausos.

Ao passo em que me distanciava, um alívio foi invadindo minha angústia. De longe podia ouvir o ressurgir do riso de Esmeralda. E como uma sábia em ar maquiavélico, deixei o cinema naquela tarde.

Publicado originalmente setembro de 2004

Sórdida embriaguez

Resolvi esperar a chuva passar. Parei embaixo do toldo de uma sapataria. Um vento gelado fazia tremer as poças. Era final de dia. Quinze minutos, parou. Andei sem pressa, mas na velocidade habitual. Gosto de sentir o vento enquanto vou. Meus braços, minhas pernas, meu passo. Entrei. Tinha umas vinte pessoas. Quase as mesmas de sempre. A partir daquela hora, os clientes apareciam. Fui para o meu lugar no balcão. Pedi vodca. Não cumprimentei ninguém. Ninguém ia ali confraternizar nada. Todos iam isolar-se. Era para isso que existia. Este era o seu sentido. Os desavisados percebiam a atmosfera logo nos primeiros 10 minutos de permanência. Vozes cessadas. Silêncio absoluto se não fosse o blues penetrante vindo do teto. O blues necessário. A música é mais um elemento isolado, com sua carga própria. Como qualquer um ali, adaptado. O tédio reina, alucina. E a pobreza beberica álcool. Fuma. Cospe. Encara. E perto das quatro da matina, esquece de suas bocas banguelas, dos seus beiços em baba, e sorri. Bêbados. Silenciosos. Dormentes. Lançam para o entortado horizonte que vêem discretos risos, quase inconscientes. Fitam. Inclinam-se um pouco mais. Meio que desmanchando-se no balcão, na mesa, na cadeira. E paralisam.

Tinha tido um dia chato, sem cor. Contas, limites, barulho. Tentei ler um pouco. Desisti. A imoralidade sofredora e rabugenta daquelas pessoas me convidou. Tomei sete doses de vodca. Imundos. Fracos. Cigarros. Do balcão perambulei na vida daqueles perdidos. Misturei com a minha. Quis chorar, mas preferi rir dos outros. Enquanto pedia mais um drinque, comecei a pensar colorido.

Fazia calor e fui sentar próximo ao ventilador. Fumei dois cigarros, inerte. A porta abriu-se. Meio molhada ela entrou. Uma velha de uns 70 anos, maltrapilha, veio direto sentar-se na minha mesa. Não disse nada. Ela olhou nos meus olhos. Demorou. Comecei a me incomodar. Suas mãos alcançaram meu cabelo. Fedia. Minhas palavras congelaram. Não disse nada. Ela começou a chorar. Tirou um lenço do sutiã. Melancolia escorria em sua face. Quis consolá-la. Tirou da bolsa uma corda. Havia um nó. Levantou-se. Caminhou até o centro do bar. Não entendi nada. Bebi mais um pouco de Vodca. Aquela imagem velha... sei lá! Parecia um afeto meu. Ela de costas. Sua altura, seu passo. Quem era aquela mulher? Colocou a corda no pescoço. Virou para mim e me mostrou uma gargalhada assustadora, gritante. Os olhos estavam vermelhos, explodindo. E em menos de um minuto, pendurou a corda e saltou. Levantei gritando de pavor. A mulher enforcou-se! Todos olharam para mim e não para ela. Quis mostrar a todos, no centro do bar. A mulher não estava mais. Nem ela, nem corda. Meu Deus! Parecia loucura, mas ela deixou o lenço. Aquele lenço era o meu atestado de sanidade. Fumei mais cigarros. Aos poucos fui me acalmando. Sentia-me tonto. Mas não desejava casa.

Distrai-me na conversa monossilábica da mesa atrás de mim. Um casal. Sórdido. Quis me virar, mas não o fiz. Ouvi, apenas:

- Kelly
- Quê?
- Bebe.
- Bebi.
- Mais.
- Não.
- Buceta, bebe esta porra.
- Pára.
- Cadela.
- Bofe, deixa...
- Cadela.
- Se fudê.

Em seguida, o arroto. O fedô. Nenhuma dúvida. Ela acabara de vomitar. Salpicou nos meus sapatos. Reagi virando-me para a mesa dos dois:

- Filhos da puta! – Espantei-me. Calei.

Eram duas crianças. Deviam ter uns doze anos. Prostituídos, acabados, alcoólatras. Senti-me responsável. Dei de ombros. Em poucos segundos senti raiva. Azar o deles. Almas sebosas.

Presumi que deveria ir embora. Estava pesado o clima no bar. Hoje muito mais que qualquer dia. Tentei levantar da cadeira. Minhas pernas estavam mortas. Demorei para acreditar. Pareciam cimentadas, plantadas. Desisti. Resolvi beber mais um pouco. Sentia calafrios. O coração apressado. Fiquei surpreso. Alguém acabara de pisar no meu pé. Mas onde? Não havia ninguém por perto. Ninguém sentara na mesa. Outro pisão. Resolvi olhar. Meu Deus! Estou ficando louco. Meu pé esquerdo pisoteava o direito. Minha perna largara de meu tronco. Sem uma gota de sangue. Sem um estalar de ossos. Como pode? A perna estava ensandecida. Agora me chutava o joelho. Tive que tomar providência. Impor respeito e gritei:

- Acabe com isso. Puta merda! – Estava irritado. Nervoso com tudo – Dane-se, perna. Que porra é essa?!

A perna subiu na cadeira em frente a minha. Estava calma. Parecia gente. Esperou eu acabar de falar e pulou. Fiquei pasmo. Saiu pulando. Minha voz esvaziou. Apenas fui capaz de assistir ela desviando as mesas, saltando obstáculos e ultrapassando a porta. Lá se foi. Fiquei amputado e bêbado. Permaneci sentado. Vazio, dormi.

Com o surgir da claridade, o encarregado espanta os que ficaram. Sem sorrir, sem falar, sem nada. Como faz para afastar as moscas, retira o último com o pano que tem sempre acomodado no ombro direito. Tange. Sentei na praça. Vago. Permaneço. O dia se derrama devagar. Recolhe os cartazes, desenrola a porta. Sai andando. Diminui no longe do caminho. E termina engolido pelo derradeiro suspiro da madrugada. Até amanhã.

Publicado originalmente em dezembro de 2004

Carmelita e a árvore

Carmelita sempre foi meio esguia. Às vezes tinha vergonha das mãos ossudas e as escondia na blusa, discretamente. Moça, devia ter uns 20 anos. Poucas palavras, gestos tímidos. Cresceu acostumando-se com a mãe doente, sempre. O pai era um bêbado da pior espécie, canalha. Não gostava de banho, achava coisa de marica. Trabalhava numa oficina e tinha o macacão como eterna morada. Apesar das circunstâncias, Carmelita não sofria agressões físicas. A mãe não tinha forças, o pai nem a via. Como um vira-lata, ignorado, era Carmelita nos cantos da casa. Mal falava. Sabia que não havia ouvidos para as suas palavras. Nem tentava agradar. Sabia que irritaria se o fizesse. Apenas sobrevivia. Acordava, abria as janelas do casebre. Recolhia a urina da mãe, cada vez mais gorda, cada vez mais imóvel. Limpava o vômito do pai que muitas vezes dormia acompanhado por outras mulheres, ali mesmo, na sala. Vermes. Fazia a comida e se retirava à sombra da mangueira. Lá sim, conversava.

Tinha a árvore como uma mistura de madrinha com irmã, algo ssim. Todos os dias, Carmelita sentava-se, beijava a sua árvore e buscava saber como havia passado a noite. Algumas vezes era vista pelo pai que fazia questão de lhe ofender soltando o grito: "Magrela pé de pau, busca o que fazer. Não tive filho para vadiagem." E sempre Carmelita avermelhava sua franzina face. Sentia vergonha, principalmente pela presença de sua amiga. Tinha medo que ela a deixasse, a achasse inútil ou mesmo fraca diante dos berros do pai. Mas bastava Carmelita encostar a cabeça na mangueira para saber que nunca iria acontecer. E como se a árvore sentisse precisar afirmar isso, derramou uma cheirosa manga no seu colo.

Carmelita foi crescendo. Sofria muito em casa, mas quando chegava na varanda, sorria junto com a árvore. Passaram-se os anos até que faceleu sua mãe. Não sentiu de fato saudade. Mas sentiu-se sozinha. Porém, experimentava um certo silêncio que antes as reclamações da jovem gorda esvaia. Sentiu mais terror do seu pai. E inventou a mágica que o fez desaparecer, ao menos dentro dos seus dias. Mesmo que o visse, que o ouvisse. Fez-se muda e surda. O pai, como sempre deu de ombros. Na verdade, o pai sequer percebeu diferença nenhuma. E continuou o mesmo pai. Agredia-lhe. Chamava-a de porca e saía pensando na cerveja que esquentava. Ela silenciava e seguia para a leve companhia de sua árvore. Relaxava, algumas vezes até dormia. Sentia-se segura em sua sombra. E agradecia sempre aos céus por tê-la por perto.

Certo dia, sentiu-se mal. Era madrugada e um impulso a fez correr para a árvore. Havia uma equipe com equipamentos em volta dela. Temeu estar certo seu pensamento. Correu. Buscou saber o que estava acontecendo. Responderam-lhe: "Nada demais, minha querida. Volte para seu sono. Vamos apenas derrubar a mangueira. Aqui será construído um bar". "Nããããããoooo". E subiu rapidamente nos galhos impedindo a ação. A equipe de trabalhadores ficou atônita. Começou amanhecer. Carmelita não desceu nem quando um deles subiu para retirá-la. Com mais horas chegou o engenheiro, o dono da construção, seu pai e suas amantes, a vizinhança, a televisão, o prefeito, os bombeiros, enfim. Nada adiantou. Carmelita parecia ter ganhado galhos, ter criado raíz também. Parecia confabular com a centenária árvore. Estava certa de que ou faziam o bar sem a árvore e arrancavam dali a vida das duas, ou adaptavam a idéia e mantinham a árvore em seu lugar.

A manifestação ganhou proporções impressionantes. Grupos ambientais vieram juntar forças em prol de Carmelita e sua árvore. Crianças gritavam: "Carmelita, Carmelita, Carmelita". E de cima Carmelita ria, abraçava-se com a sua companheira e esperava a decisão. Havia um aparato e toda a confusão estava sendo transmitida ao vivo. O dono do bar começou a gostar da promoção. Pensou ser um bom negócio todos aqueles olhos diante do seu futuro bar. E imaginou não ser ruim manter a árvore no projeto. Conversou com o engenheiro e definiu: "A árvore fica e Carmelita pode descer". Uma ensudercedora salva de palmas perdurou por dez minutos. Carmelita agradeceu a todos distribuíndo sorrisos. Seu pai espalhava: "É minha filha, Carmelita é minha filha... filha... dá chauzinho pro seu pai, querida". O dono do bar dava entrevistas. As crianças, num ato de amizade, abraçavam a árvore salva. E em menos de três meses o bar funcionava tendo como sua principal atração "Carmelita e a árvore", onde dezenas de crianças adoravam ouvir histórias sobre a natureza enquanto as refeições não eram servidas.

Publicado originalmente em janeiro de 2005