Saturday, January 19, 2008

Sem título

Saí andando, descendo a ladeira. Estava sem orientação, cansada e decidida. Tinha que chegar a tempo. Não vi as horas. Não gosto de relógios. Avistei a esquina da minha infância e adentrei. Meu choro invadiu meus ouvidos. Que droga! Quantas pessoas acabamos sendo na velhice? Quantos personagens? Corri para chegar à casa amarela. Vi os cachorros do Escuro.

Escuro estava sempre na sua barraquinha de vender vaidades e fofocas. Passei por eles sem olhá-los. Não queria que me reconhecessem. Odeio cumprimentos alegóricos, entorpecidos de nadas. Não me viram e eu virei em direção ao campo. Não era mais um campo. Não importava. Nada daquilo era mais meu, apenas do passado. Dei de ombros quando avistei a lombada da média idade. Não vi o táxi. Apenas escutei o taxista:

— É aqui senhorita. O devaneio me orientou para deixá-la em cima deste galho. Bom dia!

Não entendi nada. Que merda!

Sempre carreguei a frustração de não ter sido levada nos meus 11 anos. Agora como descer desta bendita árvore? Esqueci. Fiquei por ali, abri um livro e encomendei uma cerveja. Cochilei e só consegui abrir os olhos quando a encarregada gritou:

— A próxima!Levei minha ficha e não consegui mais que entreabrir a boca enfeitando um sorriso:

— Sim sou eu... Sim... Sim... Não, não falo inglês. Não... Não... Não, minha senhora, não falo, não escrevo e nem escuto... Sim, já tenho noções básicas de informática... Tudo bem!

Deixei aquela imbelicidade sozinha torneando a escrava matemática da sobrevivência e menti:

— Amanhã, sem falta.

No estacionamento, coloquei minhas asas e saí. Não queria pegar o engarrafamento. A brisa estava eufórica e parei para limpar os óculos. Merda! Que deficiência não ver o contorno sem este aparelho caquético. Caí na sala de estar de um casal histérico. Fiquei por ali e providenciei que ninguém me visse. Discutiam sobre contas, filhos e regalias sociais. Deslizei pela cozinha quando meu coração foi tomado pela saudade. Uma ridícula saudade, é fato. Mas uma saudade de todo modo e meus olhos insinuaram lágrimas. Na minha frente estavam lírios, muitos. Lírios e margaridas. Fui convidada por eles a uma sombra e aceitei. Não falamos nada, não seria necessário um só fonema naquele momento. Estávamos nos sentindo quando a buzina absurda da velha locomotiva ensurdeceu aquela hora.

Fechei os olhos e ceguei meus ouvidos com as mãos. Levantei lentamente. Ainda de olhos fechados e mãos nas orelhas. Fui levantando e sentindo um descompasso exagerado em minhas artérias. Quis dar um passo quando fui impedida pelos gritos enlouquecidos de uma população inteira. A um passo dos meus sapatos, trinta metros de altura. Equipes lá embaixo me liam. Jornalistas, bombeiros, policiais, padeiros, cães, carros, a aurora, enfim, ninguém queria perder o desfecho daquela sórdida situação. Atrás de mim, uma senhora muito lúcida esticou os braços e me acolheu:

— Minha filha, olhe por onde anda. Um passo em falso, a vida pula, o corpo vira inutilidade e jamais ninguém saberá o que você vai fazer depois do almoço.

Corri dali.

Com as pernas trêmulas da longa viagem, precisei de água. Havia uma pequena casa do outro lado da pista. Estava seco. Parecia sertão. Bati palma.

— Oh de casa!

Uma voz azeda e mal cheirosa veio de longe:

— Oh de fora!

— Água, por favor. Sinto muita sede e tenho pressa.

Espremi os olhos para entender a imagem. Vinha sendo arrastado por incrédulos chinelos um senhor de muita idade. Como numa retrospectiva, vinha lento, do fim para o começo. Negro, cabelos brancos, sorriso alargado. Trazia uma caneca.

— Aproveita, menina, a água é parca por estas bandas. O mar já chupou os rios e semana que vem ele estará de partida. É melhor não se atrasar.

Achei inteligente aquilo. Tirei meu caderno das idéias e anotei.

Fiquei vazia depois daquela água. Continuei andando pelo nada que tinha. Olhei para trás e meia dúzia de vira-latas me seguia. Fingi que não era comigo. Um deles, parecia o líder, alinhou-se a mim.

— Seu relógio.

— Não tenho relógio, odeio as horas.

— Não interessa boneca, queremos o seu relógio ou teremos que invadir suas roupas.

Ouvi rosnar os demais da gangue. Percebi que estava cercada por bandidos. Não tinha ninguém por perto. Babavam de prazer e tinham o ódio como alucinógeno.

— Dou meu nome, é tudo que tenho.

Entreolharam-se. Pareciam interessados. Um deles, talvez o encarregado pelos serviços ágeis, me derrubou com um pulo e me levou o orgulho. Seguiram rindo e estraçalhando o meu bendito orgulho.

Abri a primeira porta que encontrei. Precisava encomendar vaidade. Era uma loja de antiguidades. Passeei pelos anos ali. Desliguei o meu chão, minhas dívidas e cruzei os braços.

— Posso ajudar? - Uma voz muito rouca e irritante me atrapalhou.

— Claro! - respondi cínica — Deixe-me e jamais me faça qualquer outra pergunta.

Era uma escultura que me alimentava. Parecia um bicho, um javali, talvez. Mas tinha olhar de gente. De gente que me conhecia. Queria me dizer alguma coisa. Pedi uma cadeira. Nada mais me interessou. Deixei o instante seguinte para depois. Fitei aqueles olhos até descobrir. Desprendi minha alma por algum tempo, não lembro quanto. Um prazer inexplicável naquela relação me fez gritar de pavor. Quebrei cinco ossos da mão defendendo-me da resposta. Eram lembranças do meu matrimônio. Depois gargalhei até ser expulsa. Gargalhei de raiva, de medo, de deboche.

Perambulei. Não sabia mais onde estava. Resolvi perguntar a um velho de unhas negras que acendia um cachimbo bem no meio da chuva:

— Senhor? Por favor! Em que século estamos?

O velho me olhou, deu passos a minha volta, levantou meus braços e olhou bem fundo nos meus olhos. Passaram-se incontáveis minutos, ele me olhando e eu esperando saber onde fui parar. O velho se aproximou o máximo do meu nariz e começou a rir. Começou com um riso calmo e pausado. Depois foi aumentando tanto de volume quanto de freqüência. O velho começou a me apontar e a girar. Girando e mijando de tanto rir. Velho imundo! Parti para cima dele. Quis esmurrar o traste. Quis ferir sua face vil. Parti e bati com a cabeça num espelho. Que merda é essa agora?! Passei a mão na minha testa e senti o corte. Ardia, mas não sangrava. Levantei meu rosto e vi minha imagem: olhos fundos, cabelos desalinhados, brancos. Meus dentes acabavam de cair no ralo da pia. Minhas unhas se desprendiam dos dedos e minha coluna curvou-se. Fiquei com medo de andar. Dei um passo e caí no gramado com flores. Uma voz fragmentada e débil avisou de longe:

— Deite, querida. Não se preocupe. Jogue seus óculos fora. Não será mais preciso acordar.

Publicado originalmente em agosto de 2004

3 Comments:

Blogger Paulinha Felix said...

Ainda lembro da primeira vez que li um texto seu. Era uma matéria séria sobre garotos que cometeram suicídio em Palmeira dos Índios. Lembro também que fiquei encantada!

Aqui, o encantamento foi diferente! Adorei poder misturar tantas sensações em um só texto: fiquei curiosa, confusa, sorri, senti pena, não sei definir e isso me encanta muito! Diria que você doma as emoções.

E agora, estou em cima do muro: não sei se sou mais fã da contista ou da jornalista...

Adorei!

January 23, 2008 at 5:40 PM  
Blogger Pobres & Nojentas said...

Carla, obrigada pela visita ao nosso blog! Vou providenciar o livro da Elaine para você, mande seu endereço completo para misabreu@yahoo.com.br
Um grande abraço da colega Míriam

April 6, 2008 at 8:31 PM  
Blogger Kassia Nobre said...

Lembrou a Alice perdida no Jardim, imaginei a Carla perdida num sonho louco..realidade imaginária, vontade de ler mais..Por que vc parou de postar?? Como assim??

"Minha filha, olhe por onde anda. Um passo em falso, a vida pula, o corpo vira inutilidade e jamais ninguém saberá o que você vai fazer depois do almoço.que ela queria fugir!"

November 5, 2008 at 4:17 PM  

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