Causo do sertão, enquanto o circo não vem!
Desejo incurável! Quando o ponteiro se aproxima das dez, nada me faz tirar da cabeça a bendita espingarda. Um dia eu acabo com isso. Já quis esquecer, mas o ódio parece que só aumenta. As tocaias, desvairadas loucas da madrugada, me deram adeus, desgraçadas. Um dia eu também as pego. Me abandonaram numa noite sem lua. Fiquei lá só... Melhor. Por isso tratei de arranjar um cão, chamei o Guido. Não fazia nada mesmo! O que tem me acompanhar? Nada mais cruel que um homem entregue ao frio sem nem um ouvido, nem uma orelhinha para levantar enquanto a gente derrama as palavras, evita o entupimento das idéias. Como vai fazer? Explodir de tanto nada que se diga? Guido me ajuda muito. É! Eu nunca o vi latir... correr então?! Transfigura ser um pobre coitado, diacho. Às vezes o vejo sem força sequer para levantar. Quando se coça, desequilibra, tomba. Mas não é possível que ele não tenha alma. Tudo que tem alma tem a honra guardada. E tem outra. Só vou necessitar de Guido quando eu estiver muito mal, muito mal mesmo. Homem são, cabra macho, homem de verdade mesmo, não se confia em animal. Só em Deus e na espingarda. Nem em mais nada. Guido é só para compor uma companhia. Infeliz um homem de seus quarenta anos desacompanhado pelas estradas.
Hoje vou mais cedo. Já enchi a moringa, dei capim a Apólinário. Apolinário é outro, diacho! Oh cavalo lerdo! É moco ele! Mas não tô reclamando não. Que bexiga é um homem com um cão do lado, desmontado do cavalo, sem cela, sem laço?! Só pode ser um pérrapado, um traste, pior que um maluco fedorento e sem direção, tostando no sol e lambendo a poeira, enquanto ri se babando... só pode. Apolinário pelo menos me dá uma pose, relincha quando a gente se aproxima da feira. Sim, porque pra quê peste eu vou querer um cavalo que não relincha? A garganta dele é meio fraca. Dente só tem uns quatro, mas tá bom. Hôme. Pior é Jerônimo que a mulher foi embora e deixou o pobre sem gado. Levou Caipira, o jegue dele. Agora aó vive assim, com copo de cachaça na mão e sem saber nem mais 0 que jura por aí. Perdeu a honra num jogo de baralho. Ainda levou uma surra de tabica.
Agora eu não. Um dia Barra Mansa vai conhecer o verdadeiro Jão. Um dia minha espingarda vai mirar bem no meio das perna dela e tebeife! Me livro desta infeliz lembrança. Enterro com ela. E vou me embora procurar a sorte de novo. Minha honra foi roubada naquele dia e naquele dia eu jurei ir atrás dela. Dizem que mora num circo. Oh destino desgramado... foi simbora com um palhaço, a infeliz da Jurema. Deve ter virado a macaca do espetáculo. Tomara. Logo ela que não admitia banana. Bem feito, acho é pouco. Febitife.
Tá bom de conversa. Homem valente não tem de ficar de trelelê com ninguém não. Avalie com andante desconhecido como você. Agora deu a boba mesmo. É tô infezado, que é que tem? Tô aqui desde as dez e nem um sinal daqueles mambembes. É bom que a raiva só crecer. No dia em que aquele carro descatembado cruzar o meu caminho, ai, ai. Sai de perto que minha espingarda, até que fim, vai se manifestar. Eu disse a ela, eu bem que disse a ela... Jureeeeema, não invente de fazer que nem Doda. Doda chifrô Tião e Tião, bestalha, se matou. Se você fizer que nem Doda, mato você, nêga. Mato você e enterro com a minha cuspida. Oxe, eu dizia era todo dia e ela: Oh, Jão. Diga uma coisa dessa não. Pra quê vou trair você, hôme. Pra quê, Jão?! Aí vinha toda quenga cum cara de moleca pra cima de mim. Aí eu, que nem um abestalhado, deixava a raiva ir embora e me deitava mais ela. Oh desgramada.
ATÉ QUE VEIO O DIA!!!
23 DE JUNHO, O DIA QUE O CIRCO CHEGOU EM BARRA MANSA
Jão se levantou. Guido, em carne viva - pegou um germe que lhe comia há três semanas, cochilava no terraço. Apolinário lá, amarrado. Resmungando, sentou-se na mesa, de costas para a porta, enquanto a chaleira fervia a água. Arrancou um taco de pão, reclamando da zuada que ouvia. Era o circo se aproximando. Quando a caravana estava a dez metros de distância, Jão deu um pulo. Parecia ter recebido o aviso. Correu. Atrás da porta de seu quarto, apanhou a espingarda. Correu para o terraço. Guido levantou, com muito custo, um pouco de sua cabeça, olhou para Jão e parecia pensar - já vem o doido. Só deu tempo de Jão ver a poeira baixar. A toda velocidade a caravana deixou Barra Mansa e Jão achando ter perdido uma promoção.- Mascates do inferno. Nunca passam por aqui. Pra quê diacho essa carreira. E eu doido pra negociar munição e ver se esta espingarda ainda funciona. Diacho!
E quando foi dez horas, lá foi o trio - Jão, Guido e Apolinário - esperar a tal da Jurema na direção oposta.
Publicado originalmente em maio de 2005
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