Afinal, pernas, pra quê lhes queria?!
Quis andar hoje. Sei lá, andar. Sem compromisso com as horas, com ninguém, nem comigo. Combinei com minhas pernas: pernas, levem-me. As pernas obedeceram e foram. No primeiro quilômetro as vigiei. Vai que elas resolvem entrar pelo cano?! Mas a partir do segundo, relaxei. E relaxei de verdade. A Esquerda é sempre a engraçadinha da turma. Vendo-me relaxada, de olhos fechados, arriscou: Passa a bola! É cada uma! Resolvi não passar a bola coisa nenhuma. Chutei. A eficiência fortificada da Direita acertou uma vidraça. Ambas me arrancaram dali. Batiam no meu bumbum de tanta pressa. E eu: Pernas! Pra quê lhes quero! Parem agora mesmo. Pararam. Hoje sou de vocês, mas exijo relaxar. Quero caminhar, ir, apenas ir para qualquer lugar. Em trinta anos, este é o dia que a pressa não me visitará. Agora vão.
Direita e Esquerda foram. Calmamente me levaram pela cidade. Tinham a visão melhor que a minha. No centro, se divertiram esquivando do povaréu. Livraram meu quadril de, pelo menos, três quinas. Fizeram-me saltar de graça. Reclamei quando, em plena Praça dos Martírios, ousaram emplacar pulos coreografados de Dançando na Chuva. Vieram as topadas e percebi que era a hora de parar. Já passavam das seis. Estávamos longe. Assumi minhas pernas. Sentei olhando para a lagoa. Direita e Esquerda dormiam agora. Débeis. Descalcei os pés. Enfiei-os na água. Na beirinha da ponte, deitei. Os pés na água. Uma calmaria! Sentada encontrei o que buscava o dia inteiro bantendo pernas. Fechei os olhos.
AAAAAAAAAAAAAAAAA! Gritei de dor. Havia dormido. Deitada. Na ponte. Havíamos dormido, Meu Deus! Eu, meus pés, minhas pernas. Uma fração de segundos e o acontecido. De ré, uma lancha desgovernada arrancou meus membros que adormecidos aguardavam meu chamado. Que em breve seriam calçados e, com preguiça, me levariam para casa. Agora, em seus lugares, água e sangue. Quase desmaiei. Resisti. Ainda pude ver Direita e Esquerda sendo levadas. Quis abraça-las, mas ainda não sabia andar com as mãos. Hoje, meu mundo virou de ponta cabeça. Mesmo! Literalmente. Troquei os sapatos por luvas de palmas emborrachadas e ganho a vida por aí... transformando a assustada piedade da frágil população numa inesgotável fonte de renda. Afinal, pernas, pra quê lhes queria?!!!
Publicado originalmente em outubro de 2004
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