Sórdida embriaguez
Resolvi esperar a chuva passar. Parei embaixo do toldo de uma sapataria. Um vento gelado fazia tremer as poças. Era final de dia. Quinze minutos, parou. Andei sem pressa, mas na velocidade habitual. Gosto de sentir o vento enquanto vou. Meus braços, minhas pernas, meu passo. Entrei. Tinha umas vinte pessoas. Quase as mesmas de sempre. A partir daquela hora, os clientes apareciam. Fui para o meu lugar no balcão. Pedi vodca. Não cumprimentei ninguém. Ninguém ia ali confraternizar nada. Todos iam isolar-se. Era para isso que existia. Este era o seu sentido. Os desavisados percebiam a atmosfera logo nos primeiros 10 minutos de permanência. Vozes cessadas. Silêncio absoluto se não fosse o blues penetrante vindo do teto. O blues necessário. A música é mais um elemento isolado, com sua carga própria. Como qualquer um ali, adaptado. O tédio reina, alucina. E a pobreza beberica álcool. Fuma. Cospe. Encara. E perto das quatro da matina, esquece de suas bocas banguelas, dos seus beiços em baba, e sorri. Bêbados. Silenciosos. Dormentes. Lançam para o entortado horizonte que vêem discretos risos, quase inconscientes. Fitam. Inclinam-se um pouco mais. Meio que desmanchando-se no balcão, na mesa, na cadeira. E paralisam.
Tinha tido um dia chato, sem cor. Contas, limites, barulho. Tentei ler um pouco. Desisti. A imoralidade sofredora e rabugenta daquelas pessoas me convidou. Tomei sete doses de vodca. Imundos. Fracos. Cigarros. Do balcão perambulei na vida daqueles perdidos. Misturei com a minha. Quis chorar, mas preferi rir dos outros. Enquanto pedia mais um drinque, comecei a pensar colorido.
Fazia calor e fui sentar próximo ao ventilador. Fumei dois cigarros, inerte. A porta abriu-se. Meio molhada ela entrou. Uma velha de uns 70 anos, maltrapilha, veio direto sentar-se na minha mesa. Não disse nada. Ela olhou nos meus olhos. Demorou. Comecei a me incomodar. Suas mãos alcançaram meu cabelo. Fedia. Minhas palavras congelaram. Não disse nada. Ela começou a chorar. Tirou um lenço do sutiã. Melancolia escorria em sua face. Quis consolá-la. Tirou da bolsa uma corda. Havia um nó. Levantou-se. Caminhou até o centro do bar. Não entendi nada. Bebi mais um pouco de Vodca. Aquela imagem velha... sei lá! Parecia um afeto meu. Ela de costas. Sua altura, seu passo. Quem era aquela mulher? Colocou a corda no pescoço. Virou para mim e me mostrou uma gargalhada assustadora, gritante. Os olhos estavam vermelhos, explodindo. E em menos de um minuto, pendurou a corda e saltou. Levantei gritando de pavor. A mulher enforcou-se! Todos olharam para mim e não para ela. Quis mostrar a todos, no centro do bar. A mulher não estava mais. Nem ela, nem corda. Meu Deus! Parecia loucura, mas ela deixou o lenço. Aquele lenço era o meu atestado de sanidade. Fumei mais cigarros. Aos poucos fui me acalmando. Sentia-me tonto. Mas não desejava casa.
Distrai-me na conversa monossilábica da mesa atrás de mim. Um casal. Sórdido. Quis me virar, mas não o fiz. Ouvi, apenas:
- Kelly
- Quê?
- Bebe.
- Bebi.
- Mais.
- Não.
- Buceta, bebe esta porra.
- Pára.
- Cadela.
- Bofe, deixa...
- Cadela.
- Se fudê.
Em seguida, o arroto. O fedô. Nenhuma dúvida. Ela acabara de vomitar. Salpicou nos meus sapatos. Reagi virando-me para a mesa dos dois:
- Filhos da puta! – Espantei-me. Calei.
Eram duas crianças. Deviam ter uns doze anos. Prostituídos, acabados, alcoólatras. Senti-me responsável. Dei de ombros. Em poucos segundos senti raiva. Azar o deles. Almas sebosas.
Presumi que deveria ir embora. Estava pesado o clima no bar. Hoje muito mais que qualquer dia. Tentei levantar da cadeira. Minhas pernas estavam mortas. Demorei para acreditar. Pareciam cimentadas, plantadas. Desisti. Resolvi beber mais um pouco. Sentia calafrios. O coração apressado. Fiquei surpreso. Alguém acabara de pisar no meu pé. Mas onde? Não havia ninguém por perto. Ninguém sentara na mesa. Outro pisão. Resolvi olhar. Meu Deus! Estou ficando louco. Meu pé esquerdo pisoteava o direito. Minha perna largara de meu tronco. Sem uma gota de sangue. Sem um estalar de ossos. Como pode? A perna estava ensandecida. Agora me chutava o joelho. Tive que tomar providência. Impor respeito e gritei:
- Acabe com isso. Puta merda! – Estava irritado. Nervoso com tudo – Dane-se, perna. Que porra é essa?!
A perna subiu na cadeira em frente a minha. Estava calma. Parecia gente. Esperou eu acabar de falar e pulou. Fiquei pasmo. Saiu pulando. Minha voz esvaziou. Apenas fui capaz de assistir ela desviando as mesas, saltando obstáculos e ultrapassando a porta. Lá se foi. Fiquei amputado e bêbado. Permaneci sentado. Vazio, dormi.
Com o surgir da claridade, o encarregado espanta os que ficaram. Sem sorrir, sem falar, sem nada. Como faz para afastar as moscas, retira o último com o pano que tem sempre acomodado no ombro direito. Tange. Sentei na praça. Vago. Permaneço. O dia se derrama devagar. Recolhe os cartazes, desenrola a porta. Sai andando. Diminui no longe do caminho. E termina engolido pelo derradeiro suspiro da madrugada. Até amanhã.
Publicado originalmente em dezembro de 2004
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