Saturday, January 19, 2008

Hoje sim, senti uma vontade louca de escrever

Hoje sim, senti uma vontade louca de escrever. Não tenho, no entanto, nenhum tema em mente. Divorciei-me deles. Muitas vezes fiquei esperando que um tema viesse, batesse em minha cabeça: Toc, toc, toc. Posso entrar, dona Carla. Sou alegre, poético. Ou então: Sou Cult. Já venho esmiuçado. Precisa ver minhas vertentes. Ou mesmo uma música que entrasse pelos meus ouvidos, dançasse lá dentro, saísse pelos meus dedos e mais tarde pudesse ler. Pudesse apagar. Mas não! Nada. E sofri com isso. Acho que todos que necessitam escrever sofrem com a estiagem de palavras. Mais que a estiagem, sofrem com a tal relação com o tema, com o assunto, com os por quês, com o começo, e sobretudo, com o fim.

Levantei meio lerda esta manhã. Cedo. Caminhei para a minha xícara. Senti arrepios na cabeça. Nada demais. Sempre sinto arrepios no couro cabeludo. Até gosto. Uma espécie de cafuné independente. Mas o daquela manhã me afigurou demasiado esquisito. Geralmente a cosquinha fica num lugar só por vez. Aparece. Demora um pouquinho, desaparece. Depois de um tempo, pode ou não voltar. Ninguém é agraciado com meia dúzias de cafunés num mesmo café da manhã. Admito, comecei a temer. Pensei em espíritos. O que diacho querem de mim? Maquiei-me calma. Indiferente. Tentei: Bom dia, querido invisível. Muito gentil de sua parte a iniciativa de relaxar meu crânio, justo numa manhã assim, né, quente? Agradeço e digo-lhe que já me sinto satisfeita. Mais relaxada, impossível. Gostaria que parasse. Por favor, não me leve a mal. Pelo contrário, o arrepio ganhou velocidade. Sentia duas mãos mexendo minha cabeça. Paralisei. Acho sempre que ficar imóvel ajuda em alguma coisa. Claro que não. A coisa agora me despenteava, puxava meus cabelos, me empurrava. Quis gritar, mas graças à Deus, desisti. Os vizinhos já me acham maluca, doidona. Teriam agora provas. Ainda mais contando com a digitalização exarcebada... tudo agora é foto. Todos iriam adorar ter uma. Até eu. Queria ver de outro ângulo aquele absurdo. Melhor não. Claro, melhor não!

Nessas alturas eu estava completamente zonza, refém. Meus cabelos mais pareciam uma alça para alguma força, para alguma mão, algum gancho. Cheguei a elevar-me. Estava puta com quem ou com o que bexiga fosse aquilo. Permitiria-me a uma baixaria com a raiva que estava. O medo já era. Quem diabos tem a ousadia de invadir meu café e sair me rodando pelos cabelos? Era só isso que me interessava saber. Já não existia mais um talher em cima da mesa. Um tufão. Cheguei a pensar que virei um tufão. Que já não era mais gente, era vento. Vento desvairado. Vento desencontrado. Vento que tromba em si mesmo. Hematomas me estampavam. Passava a mão por cima da minha cabeça e era inútil, não tinha nada. Meus cabelos minguaram. Meus pés batiam na geladeira, no fogão, nos bancos. Durou meia hora a insanidade. Depois fui lançada em cima da pia. Pronto. Tudo voltou ao mais absoluto silêncio. Eu sangrava. Puta merda! Que porra foi isso?! Não tinha ninguém para me explicar. Eu entre cacos. Nada mais. Restabeleço-me. Busco minhas sandálias (uma em cima do armário, a outra na pãozeira). Alcanço um analgésico. Alongo meus ombros. Saio. Vou para a sala.

De longe avistei uma cabeça ruiva, de costas, relaxada na minha poltrona. Antes que me visse reclamou:
- A questão é a seguinte: que cabeça dura a sua!
Eu, com uma cautela que jamais tivera, quis saber:
- Quem é você? O que faz aqui? - Com voz mansa, mansinha, evitando o máximo mais aborrecimentos.

Levantou-se. Uma sincronia admirável. Pausada, equilibrada. Virou-se. A mulher era impecável. Usava uma blusa de linho, com corte fino, caprichado. Uma maquiagem metricamente conveniente. Nos pés, sapatos brilhosos, bico fino, salto mediano. Uma pantalona muito elegante. Bijuteria satisfatória. Um pequeno sorriso:
- Não vim gerar conflitos, pelo contrário. Vim libertar-me de você.
- De mim? Mas quem diacho você é? De onde peste eu lhe conheço?
- Acalme-se. Você sempre foi assim, afobada. Não sabe como isso me irrita, me bloqueia, me limita.
- Olhe aqui, minha senhora. Não estou num bom dia... não mesmo - e antes que eu estreasse na baixaria, interrompeu-me, leve, entre um gole de chá que eu não faço idéia de onde ela foi buscar:
- Hoje, na cozinha, começamos a nos afastar.
- Você viu?
- Como você é ingênua, filha.
- Odeio que me chamem de filha, principalmente desconhecidos.
- Quem te fez rodar fui eu.
- AAAAh, sua desgraçada! - e corri para pendurar-me em seu cabelo esteticamente primoroso, moldado, rídiculo para ser mais precisa e franca.
- Opa, opa, opa. - Ai como odeio efusões de bom senso - não adianta me atacar. Batendo em mim, é você quem vai sentir.
Acho que tirei a gargalhada do inferno de tão debochada, sarcástica que soou. Até fiquei espantada, mas não deixei ela reparar:
- arrrr rá rá rá rá... arrrr rá rá rá rá, não me faça mijar na sua frente. Você é uma louca. Você é uma desajustada, uma manifestação da besta fera. De qual manicômio você saiu?
- Saí de você.

Ainda ria, mas minhas bochechas cessaram a graça. A afirmação pronunciada entrou em mim como toneladas de realidade. Tremi. O que era, afinal, aquela mulher? Como ela veio parar na minha sala, no meu tapete, diante de mim?

Com esforço consegui:
- Com - como?
- Oh, minha filha, sem churumelas. Sempre assim, você, hein? Que dificuldade em conceber o momento, as coisas que se apresentam aos seus olhos. Santa incompetência! Por que tudo tem que ter um infantil "com - como?". Desculpe os termos, mas até eu às vezes preciso: puta que pariu, porra de "com - como?", minha filha. Tomar no... - E como se estivesse recebido um recado do auto-controle, continuou - Sou a guardiã das suas idéias. Sua memória lúdica. Quer dizer, era. Vim demitir-me. Eu era uma parte da sua consciência. Vivia na fronteira com o seu abstrato. Jamais estarei de volta. Por questões éticas, vim comunicar-lhe.
- E qual a falta que vou sentir? Você está aí, eu aqui. Estou pensando agora... tendo idéias, inclusive!
- Mas elas não vão perdurar nada, nada. Todo escritor tem uma semelhante a mim. O que vêem, o que sentem e que pode virar palavras é organizado por alguém. Senão, perde-se tudo. Você, meu bem, é uma improdutiva. Pensa, pensa, pensa. Só vive de idéias. E eu lá, arquivando seus devaneios. Ainda mais você vive de cabeça quente. Trabalhava no maior abafado que se possa imaginar. Pra quê? Pra você escrever bulhufas. Tô fora. Dane-se você, dane-se suas idéias, dane-se seu crânio, dane-se seu futuro, dane-se dobrado seus leitores. Completos imbecis.

Fiquei atônita. Tudo o que aquela desgraçada falava, imediantamente, virava razão em mim. Muito estranho. Suava. Não conseguia formular sequer mais uma pergunta.

- Dane-se, dane-se, dane-se - Pegou a bolsa e saiu batendo a porta.Puta merda. Que manhã foi essa? Será que essa maluca saiu da minha cabeça mesmo? Parecia tão certa, tão liberta. E agora? Será que, mais do que nunca, estarei aprisionada às minhas idéias inconclusas?

Na casa um vento forte entrou. Parecia querer varrer o resto de anormalidade. Sentei meio tonta, fora da real. Uns cinco minutos devem ter passado. Corri para a máquina. Resolvi não pensar muito. Vai que tudo se esvai? Senti as palavras me chamando. Aquela mulher deveria ser uma espécie de burocracia. Agora me parece aflorar o verbo. Derramar as idéias sem preocupações com normas, com ordem, ou mesmo com lógica. Pulsá-las no papel. Assisti-las ainda frágeis. Ainda crianças. Libertá-las. Fazê-las desenho. Escrever, nada mais que escrever.

Publicado originalmente em dezembro de 2004

1 Comments:

Anonymous Acássia said...

Huumm, loucura. O tema me parece tão familiar quanto essa misteriosa de cabelos ruivos te parecia ao fim da conversa.

OK, não vale falsidade. Serei tão dura e cruel quanto fostes no dia 19 de março, sentada em uma das cadeiras do COS.

Carla, minha eterna co-orientadora, às vezes os contos me soam falsos, como se aquilo nem de perto foi sentido por quem escreveu. Situações imaginárias sem nexo entre fantasiado e fantasia, saca?

Bom poder dizer que a sensação que tenho ao lê-los é algo bem diferente do que a que sinto visitando este espaço.

Não abandone as palavras, como a tal de cabelos ruivos fez contigo naquela manhã de 2004. Por nós, leitores. ;)

June 4, 2009 at 5:19 PM  

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